Antes de contar a história que vivi, conto um pequeno episódio que li, vivenciado por dois monges e deixo que façam suas conexões entre elas.
Sobre a história lida:
Ela contava que alguns monges seguiam pela rua quando uma mulher pediu ajuda para atravessar. Então, prontamente o monge se ofereceu, a pegou no colo levando-a para o lado oposto. Chegando no mosteiro um dos monges pergunta: "Senhor, porque você pegou naquela mulher, não deveríamos manter distância?" e, com espanto, ouviu a seguinte resposta: "eu a segurei e a deixe lá, mas você veio com ela na sua mente até aqui." (Philip Toshio Sudo)
Com essa breve introdução de vidas compartilhadas, sigo contando a história que vivi:
- Oi moça, posso descansar aqui - disse
- Claro que pode, aqui é um bom lugar para descansar - respondi e voltei os olhos a leitura.
O senhor se aproxima, escolhe um bom lugar, estica seu cobertor, larga a sua mochila e acomoda-se. Respondo com um sorriso quando o vejo acomodado e volto a me concentrar na leitura, até que sinto um livro batendo na minha perna. Olho, abro, e é uma bíblia.
- Você não vai ler para nós? disse o senhor com voz ligeiramente ríspida.
- Eu adoraria ler a bíblia, é uma ótima leitura, mas agora eu tenho um capítulo para terminar - respondi com um sorriso e olhando em seus olhos.
Olho no relógio e vejo que ainda tenho meia hora do programado para esta atividade. Mas antes de voltar a leitura lembro que na noite anterior, acordei de madrugada e sem sono peguei a Bíblia, o Evangelho Segundo o Espiritismo e a Lei do Sucesso de Paramahansa Yoganada. Li um pouco de cada, buscava a relação de amor que sempre encontro entre eles, pois a fé só pode levar o amor, sem essa relação a fé não faz sentido. Mas dei um puxão na minha atenção, tinha que voltar a leitura. Só que lá no fundo tinha ficado um espanto pela coincidência, pois fazia muito tempo que não fazia leituras focadas em religião.
- Ei, você tem um papel? - interrompendo-me novamente e vendo que tenho um caderno na mão - eu queria enrolar um fumo.
- Já lhe dou - respondo novamente com um sorriso.
Entrego o papel em sua mão. Nessa hora a Kisha fica incomodada e começa a latir, eu passei a mão na cabeça dela acalmando-a. Ela deitou do meu lado baixou a cabeça, mas não tirou os olhos daquela pessoa estranha. Volto a ler e continuo as anotações.
Não sossegando ele chama a minha atenção novamente:
- O que você bebe? - peguntou-me, enquanto via eu olhar para a minha garrafa de água ao lado - não deve gostar de uma cachaça - afirmou com a garrafa apontada na minha direção -, e já viu o preço que está, custa R$ 4,00 essa garrafa, não é um absurdo?
Eu realmente nem fazia ideia e acho que o custo é muito maior que o valor financeiro, custa sua lucidez e o leva para um mundo não real e só está destruindo a sua saúde, mas não iria discutir isso naquele momento. Então respondi afirmando positivamente com a cabeça e voltei a leitura. Mas nesse momento já estava difícil manter o foco, sentia o quanto ele queria atenção ou alguém para conversar. E, o martelinho batia na cabeça. Será? Devo interromper minha leitura? Já fiz isso tantas vezes... Contudo, resolvi continuar a leitura. Vou terminar, isso é importante para hoje.
- Se quer ler, então leia. - falou o senhor jogando dois livros na minha frente.
Acho que realmente ele queria chamar a minha atenção, olhei os livros, eram de uma coleção da revista Veja. O primeiro com capa azul era 'Titanic', logo já reconheci a história que tinha visto umas quatro vezes e ainda havia passado na TV no dia anterior; e o outro com capa rosa 'A cor púrpura' que ainda não conheço a história. Mas vendo que depois de tantas tentativas eu não respondi, ele se acomodou como se fosse dormir e fechou os olhos. Acompanhei-o com o olhar por alguns minutos e vi que ele espiava sorrateiramente. Sua respiração foi ficando mais profunda e mais lenta, até que finalmente dormiu.
Nosso 'encontro' deve ter durando de 30 a 40 minutos, mas não ficou por ali. Terminei o capítulo, fechei o livro e o caderno, guardei tudo que levava e fiz uma imagem do que eu vivia, pois não é uma coisa que acontece todos os dias. Levantei, coloquei seus livros sobre o cobertor e segui para casa.
Enquanto eu caminhava, por muitas vezes eu lembrava dele e fiquei imaginando como teria chegado ali, da onde era e o por quê de não ter conversado com ele. Logo eu que gosto tanto de ouvir as pessoas e saber de suas histórias... Poderia ser algo incrível e que talvez jamais terei outra chance de o ouvir. Só que eu precisava continuar na minha decisão e entender que naquele momento foi a coisa certa a fazer. Eu queria ler, eu queria terminar o que havia começado e ele dormiu antes de eu terminar a tarefa. Então, só me restou ir embora. Ainda pensava na relação dele com a Bíblia e as condições que ele se encontrava e algumas questões ficaram até eu escrever esse texto e compartilho para que possamos estar sempre nos vigiando e refletindo:
Por que com tantas informações: livros, músicas, filmes, arte, tudo que fala das das relações e dos sentimentos, ainda tememos tudo que vem da mente, do espírito, do emocional?
Nós modificamos as cidades, construímos e seguimos delimitando o espaço, e assim com prédios, ruas e calçadas criamos relações sociais e comerciais. Mas se as cidades não são feitas para todas as pessoas e suas relações, são para quê? É justo alguém 'ficar de fora'?
De quem é a iniciativa de mudar como as relações políticas-sociais estão acontecendo? Quem é que vai cobrar dos que levaram os nossos votos? Até onde somos passivos ou ativos no agora?
A partir de que momento começamos a construir uma relação e somos responsáveis pelos nossos atos ou não atos do que temos consciência?
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